Entrevista a Urim Bajrami, advogado na sociedade de advogados Stadler & Völkel, Áustria.
De acordo com o estudo Loot boxes in online games and their effect on consumers, in particular young consumer, da Comissão do Mercado Interno e da Proteção dos Consumidores do Parlamento Europeu (julho 2020), as “loot boxes” ou caixas de recompensas, são recursos dos videojogos às quais o utilizador pode aceder através do próprio jogo ou adquirindo-as contra pagamento com dinheiro real. Trata-se de caixas misteriosas que contêm itens aleatórios ─ ferramentas, armas, níveis, mapas, moedas de jogo, customização da aparência do avatar ─, o que significa que o jogador desconhece o conteúdo da caixa até a abrir.
Ultimamente, as loot boxes têm sido um tema controverso em quase todas as jurisdições por colocarem uma questão premente: são ou não consideradas jogos de azar? Falámos com Urim Bajrami, advogado da Stadler & Völkel, chefe do Conselho Jurídico da ESVÖ e ex-jogador de Hearthstone (um jogo de cartas digital).
APAJO: Urim, no final do passado mês de fevereiro, o Ministério das Finanças austríaco, que até então era responsável pelo Jogo no país, anunciou a criação de uma autoridade de jogo independente para mitigar o risco de suborno, por exemplo. Além de pretender trabalhar com um registo de exclusão aplicável por todos os operadores, assim como limites de depósito ─ através de operadores e restrições de publicidade ─, ou seja, um modelo que em muitas partes seguirá o exemplo alemão, curiosamente, também a regulamentação das loot boxes foi definida como “a” ferramenta que prepararia o terreno para adiar o uso de dinheiro real por parte dos menores de idade no jogo online. Na sua opinião, porque é que as loot boxes são mencionadas explicitamente nesta fase inicial?
Urim: Faz todo o sentido introduzir a questão das loot boxes nesta fase inicial. Não devemos esquecer-nos que muitas loot boxes contêm elementos que são comuns ao jogo de azar tradicional, como o fator aleatório e o envolvimento de dinheiro real.
Portanto, do ponto de vista do regulador, acho muito importante analisar cuidadosamente as loot boxes e fornecer, até certo ponto, regulamentações para proteger os menores, especialmente porque os videojogos são, antes de mais nada, jogados por menores que entram em contato com esse tipo específico de "ambiente de jogo". Muitos deles compram loot boxes com a intenção de obter recompensas úteis no jogo que os ajudarão a competir contra outros jogadores ou a negociar esses itens (muitas vezes em mercados secundários) para obter lucro.
"Não devemos esquecer-nos que muitas loot boxes contêm elementos que são comuns ao jogo de azar tradicional, como o fator aleatório e o envolvimento de dinheiro real."
A Áustria está atenta à dimensão do fenómeno e, por isso, intensificou os seus esforços, mostrando interesse em compreender estes novos tipos de entretenimento digital que visam a geração Y e a Geração Z, em particular.
O ministério austríaco do desporto criou um grupo de trabalho constituído por vários especialistas e membros dos partidos políticos para avaliar melhor os desafios jurídicos que surgem no domínio dos videojogos e dos e-sports. Como parte desse grupo de trabalho do governo, sou responsável pela secção "apostas, jogos de azar e loot boxes". O meu contributo, que desejo útil, resulta também da minha experiência e envolvimento prévios como advogado nesta área do jogo, bem como dos e-sports, e como ex-jogador profissional de videojogos.
APAJO: As loot boxes estão no topo da agenda, e não só na Áustria. A Espanha, por exemplo, anunciou uma consulta sobre a regulamentação das loot boxes em fevereiro. O Reino Unido, França e Alemanha estão a investigar mais sobre este assunto. A Bélgica já considera as loot boxes como um produto de jogo de azar, mas a Polónia não. E a Holanda proibiu-as totalmente.
"Com 2,3 mil milhões de jogadores ocasionais no mundo inteiro, os videojogos tornaram-se um produto “mainstream” na nossa sociedade, desempenhando atualmente um papel crucial na vida das crianças e jovens em desenvolvimento."
Urim: Sim, e é animador verificar que, por toda a Europa, as loot boxes estão, por assim dizer, no topo de quase todas as agendas que dizem respeito à regulamentação dos jogos de azar. Com 2,3 mil milhões de jogadores ocasionais no mundo inteiro, os videojogos tornaram-se um produto “mainstream” na nossa sociedade, desempenhando atualmente um papel crucial na vida das crianças e jovens em desenvolvimento.
Os jogadores profissionais são idolatrados como estrelas; muitos jovens da Geração Z almejam tornar-se numa dessas novas estrelas e estão dispostos a fazer o que for preciso, como gastar quantias absurdas de dinheiro em conteúdos de jogos digitais. No caso de uma simulação de futebol virtual da FIFA, por exemplo, o jogador online não precisa “apenas” de adquirir uma nova versão do jogo todos os anos, mas também de investir nas loot boxes disponíveis para poder competir no modo de equipa FIFA Ultimate, muito popular entre os utilizadores deste jogo. Este modo de jogo é o padrão para torneios internacionais. O que significa que os jogadores investem vários milhares de euros em loot boxes todos os anos na expetativa de conseguirem jogadores de futebol específicos, como o Ronaldo, e assim terem os melhores jogadores na equipa e poderem competir em vantagem.
"Sobre as restrições de idade, note-se que há pais e filhos que, muitas vezes, optam por ignorar essas restrições em relação aos videojogos. Então, por que deveriam ter uma atitude diferente em relação às loot boxes?"
Portanto, devemos reconhecer o facto de várias jurisdições já terem analisado esta questão do ponto de vista do jogo de azar, uma vez que os menores são especialmente suscetíveis a comprar loot boxes sem saberem o valor ou o "significado" das recompensas.
Frequentemente discutida também é a idade a partir da qual a compra das loot boxes deve ser legal. Sobre as restrições de idade, note-se que há pais e filhos que, muitas vezes, optam por ignorar essas restrições em relação aos videojogos. Então, por que deveriam ter uma atitude diferente em relação às loot boxes? Isto é especialmente preocupante nos casos onde existe uma dimensão oculta, e como tal ilegal, envolvida no jogo. Felizmente, várias jurisdições nacionais ─ como as que acabou de referir ─ suspenderam vários tipos de loot boxes, colocando-as na categoria dos jogos de azar proibidos.
"Se não for possível para os jogadores abrirem uma loot box, direta ou indiretamente, com dinheiro real, então esta não pode ser considerada uma forma de jogo de azar."
APAJO: E como é que se posiciona em relação a isso? As loot boxes são realmente uma forma de jogo de azar ou apenas de jogo? Podem ser consideradas a 'porta de entrada' para o jogo com dinheiro real? Se sim, existe alguma prova científica que sustente essa afirmação?
Urim: Repare que nem todas as loot boxes são automaticamente classificadas como jogos de azar; depende do design / programação específicos de cada caixa. Se não for possível os jogadores abrirem uma loot box, direta ou indiretamente, com dinheiro real, então esta não pode ser considerada uma forma de jogo de azar, nem se as hipóteses de "ganhar" os respetivos itens na loot box forem as mesmas (isto é, sem qualquer componente de raridade associada), porque, concetualmente, nenhum lucro pode ser obtido daqui. Além disso, se não houver um mercado específico (legal ou ilegal) para negociar esses bens virtuais ou se o jogador não tiver como vender a sua conta no jogo (in-game account) a outro, não há como lucrar com isto.
Em relação à sua pergunta sobre se as loot boxes são uma "porta de entrada", não tenho uma resposta definitiva. De qualquer forma, pode dizer-se que o ambiente e a motivação que justificam a compra e o entusiasmo que advém da recompensa esperada podem ser comparados ao tradicional jogo de azar. As crianças e os adolescentes, depois de um primeiro contacto com este produto, são frequentemente incentivadas, através de meios graficamente convincentes, a comprar ainda mais, usando dinheiro (real) que (provavelmente) não têm. Esta ligação pode ser comprovada por dezenas de estudos, incluindo o estudo de Zendle e Cairns de 2018.
"Regulamentar as loot boxes na mesma moldura legal do jogo de azar teria várias consequências. Em primeiro lugar, seria necessária uma licença de lotaria."
APAJO: Agora, vamos supor que, como diz o Comissário de Proteção de Menores no Reino Unido, por exemplo, com base num estudo feito com 29 crianças, as loot boxes são prejudiciais às crianças por causa do envolvimento de dinheiro real e do fator aleatório. Vamos supor ainda que esta é uma matéria que precisa realmente de ser regulada. Faz sentido regulamentar as loot boxes juntamente com os jogos de azar online, que por si só são permitidos única e exclusivamente a adultos? Não há o risco de se estar a empurrar as loot boxes ainda mais para perto de algo que de facto não se destina a ser usado por menores?
Urim: Na verdade, essa é uma tarefa muito desafiante para o regulador e ainda não estou convencido de que faça sentido incluir as loot boxes na legislação dos jogos de azar, em vez de se estabelecer um quadro jurídico próprio para esse tipo de entretenimento digital. Regulamentar as loot boxes na mesma moldura legal do jogo de azar teria várias consequências. Em primeiro lugar, seria necessária uma licença de lotaria. À primeira vista, não parece problemático, mas o facto de essas licenças, em muitas jurisdições, serem concedidas apenas a monopólios parece tornar as coisas mais complicadas.
Além disso, o conteúdo específico das loot boxes também deve ser discutido no decorrer do processo de regulação, já que as recompensas contidas nestas caixas não devem afetar o desempenho do jogador, especialmente quando falamos de e-sports e níveis competitivos de jogo. Os itens cosméticos, por outro lado, podem ser considerados não problemáticos.
Como se pode ver, há vários aspetos nas loot boxes que tornam difícil lidar com este tipo de produto. No entanto, a minha expetativa é de que o acesso à compra por parte de menores não seja possível sem a supervisão de adultos.
"No entanto, o RNG torna-se um problema quando há compras descontroladas ligadas a componentes psicológicos, num contexto desenvolvido para fomentar o potencial de adição."
APAJO: Considera que a tendência de regulamentação pode estar a seguir o caminho do exagero ao ponto de, num próximo momento, estarmos a regular máquinas de pinball ou caixas-mistério? Será que onde quer que haja dinheiro envolvido e/ou uma componente aleatória associada, se torna necessário criar um regulamento específico?
Urim: No caso das loot boxes há muito em causa, e é compreensível que os reguladores priorizem este tema. Várias loot boxes oferecem jogos de azar não regulamentados e ilegais, em particular a menores que começam a ser despertados para este tipo de jogo numa idade precoce. Em muitos casos, crianças e jovens menores de idade que começam cedo, não tardarão até mudar para outras formas de jogo ilegal.
Num nível mais abrangente, nunca deveria haver mais regulamentação do que o necessário, mas também não menos do que realmente é preciso. Também não passa por regular em excesso todas as áreas onde os geradores de números aleatórios (RNG) desempenham um papel. Muitas vezes, o RNG acrescenta novas camadas de diversão e emoção aos jogos, impedindo-os de ficarem obsoletos. No caso do xadrez, por exemplo, jogo onde também competi, não existe RNG, o que pode ser um pouco entediante. No entanto, o RNG torna-se um problema quando há compras descontroladas ligadas a componentes psicológicos, num contexto desenvolvido para fomentar o potencial de adição.
"O RNG combinado com micro transações e a prospetiva de possíveis ganhos de capital é um cenário problemático e deve ser analisado."
APAJO: Muito obrigado, Urim, pelo seu insight sobre este assunto. Para finalizar, é legítimo dizer que as loot boxes, incluindo RNG, precisam de regulamentação. Mas também é justo afirmar que a responsabilidade parental deve ser exigida?
Urim: Eu é que agradeço, e sim, os pais devem ser sensibilizados para estar mais atentos às atividades dos seus filhos. Os reguladores, por outro lado, devem educar os pais sobre os riscos envolvidos nos videojogos e dar indicações sobre quais destes oferecem loot boxes, uma informação contida num rótulo específico que avisa o comprador que aquele produto contém itens aleatórios.
Finalmente, o fator RNG não é de forma alguma problemático em videojogos. Na verdade, até pode ser muito divertido se aplicado corretamente do ponto de vista do design do jogo. Contudo, o RNG combinado com micro transações e a prospetiva de possíveis ganhos de capital é um cenário problemático e deve ser analisado. É lamentável que as loot boxes ofereçam fontes de receita tão lucrativas para desenvolvedores / editores de jogos, e muitos deles entrem no movimento das loot boxes. Afinal, o desenvolvimento de jogos é um negócio muito dispendioso e muitas vezes arriscado, pois não há garantia de que um videojogo se torne um sucesso por si só.
Portanto, os videojogos tornaram-se perigosamente semelhantes aos jogos de azar, um tipo de jogo oculto e especialmente acessível a menores.