Entrevista com Tiago Bessa - Managing Associate no escritório de advogados Vieira de Almeida

 

 

Tiago Bessa, Managing Associate na VdA - Vieira de Almeida, Sociedade de Advogados, fala sobre o ambiente específico da venda de aplicações para smartphones e do desafio que são as fronteiras virtuais, a lei e o bloqueio para impedir a oferta não licenciada.

 

APAJO: Tiago, embora o mercado português de apostas e jogos online esteja a desenvolver-se perfeitamente bem há já quatro anos, manter os operadores não licenciados fora do mercado continua a ser um dos maiores desafios, sobretudo depois de termos visto no verão passado uma grande campanha de um operador ilegal, com sede em Curaçao?

 

Tiago Bessa: De facto, os operadores não licenciados representam um sério problema, e não apenas no que diz respeito à evasão fiscal. Também não são obrigados a implementar os mesmos mecanismos de proteção e de auto-restrição que o regulador português prevê no que diz respeito às plataformas, aos seus produtos e aos seus operadores. Além disso, uma vez que os operadores não licenciados agem fora da oferta controlada pelas autoridades portuguesas, não há garantia de que as apostas bem-sucedidas sejam pagas. E, em caso de litígio, nenhum tribunal português terá jurisdição sobre o caso, pelo que é difícil para os clientes recorrerem à justiça em caso de dúvida. Por último, mas não menos importante, devido à falta de pagamento de impostos ao Estado português, conseguem oferecer odds muito melhores aos clientes.

 

APAJO: Para o ambiente offline, tais desvios são relativamente mais fáceis de identificar, suprimir e multar os respetivos fornecedores. Mas as atividades online puras? Penso em motores de busca, redes sociais ou aplicações para smartphones.

 

Tiago Bessa: O ambiente online apresenta, de facto, desafios específicos para as autoridades e para as várias partes interessadas em combater as operações ilegais e a publicidade que fazem. Isso não é novo e também existe noutros sectores. O exemplo clássico é o regulador ordenar o bloqueio de um determinado domínio que hospeda uma operação ilegal. No entanto, um operador ilegal pode reabrir facilmente com um domínio diferente. E uma ordem direta de cessação de operações ou de cessação de uma atividade dirigida aos consumidores portugueses pode não ser tão eficiente quanto desejamos, ou pode ser difícil de executar e de controlar.

 

"Os developers de aplicações devem ter muito cuidado para não cruzar a linha ténue entre um jogo simples e divertido e uma aplicação de apostas e jogos de azar. Muitos programadores lançam jogos para smartphones baseados em sorteios que permitem aos jogadores ganhar determinados prémios."

 

Além disso, os motores de busca dão um impulso importante e estes operadores ilegais, uma vez que muitos deles recorrem aos métodos de SEO (Search Engine Optimization). Esses métodos permitem que os algoritmos de pesquisa extraiam informações úteis de uma página da web (como a página de operadores ilegais) com precisão e quase que instantaneamente. Este não é um mecanismo ilegal per se, mas quando usado por operadores ilegais, funciona como uma forma de ultrapassarem o facto de não conseguirem obter boas classificações nas páginas de resultados de pesquisa. As redes sociais são outra ferramenta útil para operadores ilegais, não apenas para fazerem publicidade, mas também para divulgar as suas atividades para a comunidade.

 

"Muitos developers fazem descrições e categorizações da sua aplicação que são inconsistentes com o conteúdo das respetivas aplicações. Na verdade, no ano passado, foi relatado que a Apple (por meio da App Store) e a Google (por meio da Play Store) agiram sobre esse assunto, apagando centenas de aplicações ilegais de apostas e de jogos online das suas lojas."

 

Finalmente, o ecossistema de aplicações é um campo particularmente interessante, mas perigoso. Desde logo, porque os developers de aplicações devem ter muito cuidado para não cruzar a linha ténue entre um jogo simples e divertido e uma aplicação de apostas. Muitos programadores lançam jogos para smartphones baseados em sorteios que permitem aos jogadores ganhar determinados prémios.

 

"Os serviços da sociedade de informação são um grande concorrente à soberania tradicional dos Estados, uma vez que não podem fazer cumprir as suas decisões (seja a nível administrativo ou judicial) sem a cooperação técnica dos gestores das app stores. Ao contrário do bloqueio de IP ou do site, é mais difícil bloquear ou impedir o acesso a uma aplicação. Considerando que, atualmente, a maioria das atividades online é conduzida por meio de um ecossistema de apps que vive nos nossos smartphones, é claro que existe um problema que tem de ser resolvido."

 

Além disso, foi identificada uma tendência que consiste em aplicações móveis ilegais de jogos de azar disfarçados de aplicações não relacionadas com jogos de azar. Muitos fazem-no através de descrições e categorizações que são inconsistentes com o conteúdo das respetivas aplicações. Na verdade, no ano passado, foi relatado que a Apple (por meio da App Store) e a Google (por meio da Play Store) agiram sobre esse assunto, apagando centenas de aplicações ilegais de apostas e de jogos online das suas lojas. Por último, as lojas de aplicações tendem a atuar como um mercado autorregulado (com algumas das empresas mais poderosas do mundo atuando como gatekeepers) e é muito difícil determinar a jurisdição destas lojas, bem como das aplicações disponibilizadas e dos serviços que prestam.

 

"Como as aplicações não estão sujeitas à mesma carga regulatória que outros produtos, é muito fácil para um developer disponibilizar a sua aplicação aos consumidores quase que instantaneamente. Cabe, depois, aos gestores das lojas de aplicações decidir quais as que são permitidas e quais devem ser restringidas."

 

APAJO: Vamos ficar pelas aplicações. Porque é que isso é um problema específico? Por que é tão difícil para um regulador forçar as lojas de aplicações a bloquear os operadores e as marcas que são ilegais numa determinada jurisdição?

 

Tiago Bessa: Devido ao contexto imaterial e digital, não é fácil para as autoridades ou para os reguladores forçar as lojas de aplicações a bloquear esses operadores e marcas ilegais. Mas, em primeiro lugar, é importante mencionar que o risco começa com o modelo de negócio das lojas de aplicações. Como as aplicações não estão sujeitas à mesma carga regulatória que outros produtos, é muito fácil para um developer disponibilizar a sua aplicação aos consumidores quase que instantaneamente. Cabe, depois, aos gestores das lojas de aplicações decidir quais as que são permitidas e quais devem ser restringidas. Portanto, o regulador não tem controlo direto sobre quais as aplicações móveis sujeitas à sua jurisdição e que são disponibilizadas aos consumidores.

Além disso, existe o lado técnico. Como já referimos, estes serviços da sociedade de informação são um grande concorrente à soberania tradicional dos Estados, uma vez que não podem fazer cumprir as suas decisões (seja a nível administrativo ou judicial) sem a cooperação técnica dos gestores das app stores. Ao contrário do bloqueio de IP ou do site, é mais difícil bloquear ou impedir o acesso a uma aplicação. Considerando que, atualmente, a maioria das atividades online é conduzida por meio de um ecossistema de apps que vive nos nossos smartphones, é claro que existe um problema que tem de ser resolvido.

 

APAJO: Então, qual seria a sua abordagem se tivesse que amenizar a atual situação legal para tornar a aplicação da lei mais eficaz?

 

Tiago Bessa: Essa é a pergunta do milhão de dólares! Não existe um atalho fácil ou uma resposta única para isso. Acredito que um dos caminhos, que já demonstrou resultados promissores no passado, é a cooperação entre diferentes stakeholders.

 

"Em Portugal, no que diz respeito à proteção dos direitos de autor, foi assinado um Memorando de Entendimento entre a Inspeção Geral das Atividades Culturais e os operadores de telecomunicações (através da sua associação representativa) que permite um bloqueio rápido e eficaz de sites ilegais ou IPs (mesmo IPs dinâmicos) que violam os direitos autorais, assim que são identificados."

 

Por exemplo, em Portugal, no que diz respeito à proteção dos direitos de autor, foi assinado um Memorando de Entendimento entre a Inspeção Geral das Atividades Culturais e os operadores de telecomunicações (através da sua associação representativa) que permite um bloqueio rápido e eficaz de sites ilegais ou IPs (mesmo IPs dinâmicos) que violam os direitos autorais, assim que são identificados.

Um mecanismo semelhante entre o regulador português e os gestores das lojas de aplicações poderá ser concebido de forma a proteger não só os consumidores, mas também os operadores legais, bem como o interesse público. A cooperação internacional também pode ser uma boa forma de enfrentar melhor a aplicação e a execução das medidas administrativas e/ou judiciais.

Uma etapa final pode ser a definição de um cenário jurídico específico para lojas de aplicações ou para as aplicações, mas isso pode ser difícil de alcançar ou pode ser prejudicial à inovação e ao investimento. O equilíbrio certo é difícil de alcançar, mas nos últimos anos tornou-se claro que existe uma pressão crescente dos legisladores da UE para definir mais regras para o ambiente online, para as plataformas online e para os serviços digitais.

 

"Há alguns anos, só víamos publicidade virtual nas nossas TVs e depois em sites. Contudo, estamos, agora, expostos a um ecossistema de aplicações onde vemos publicidade, mas através do qual também podemos fazer compras imediatas, dentro das próprias aplicações."

 

APAJO: Quando olha para o futuro e para o ritmo acelerado de desenvolvimento da tecnologia e do comércio eletrónico, o que acha que devemos começar a preparar tendo em conta os desafios do futuro?

 

Tiago Bessa: O comércio eletrónico, em geral, e as apostas e jogos online, em particular, são áreas que estarão sujeitas a um enorme grau de perturbação e inovação devido ao desenvolvimento e implementação de tecnologias de ponta. Acredito que a ampla implementação de redes 5G, juntamente com o uso de ferramentas preditivas por meio de IA e Machine Learning, e impulsionado por grandes bases de dados, serão a linha da frente e o que vai liderar essa rutura. Essas tecnologias impulsionarão a implementação de mecanismos, como a definição individual de preços, sobre a qual tivemos a oportunidade de falar na entrevista anterior. Além disso, o uso de ferramentas de realidade virtual ou aumentada mudará completamente o interface do utilizador e a experiência de utilização (UI/UX). Um jogador pode estar a jogar num casino em Monte Carlo ou em Las Vegas sem nunca sair da sua própria sala de estar.

No entanto, também vão surgir muitos desafios legais com a implementação dessas tecnologias, particularmente em relação ao jogo online. Neste contexto, é relevante referir a recente consulta sobre as novas orientações para anúncios de “loot boxes” e outras compras in-game, lançada pelo British Committee of Advertising Practices (CAP).

Gostaria de destacar três aspetos deste documento: Em primeiro lugar, reflete uma tendência que acredito que veio para ficar: ‘a regulação suave’. Na verdade, por meio de uma orientação formal, em vez da implementação de novas regras estritas, os reguladores podem lançar uma luz sobre o caminho da tecnologia sem aumentar muito a carga regulatória e, dessa forma não impedirem que a inovação aconteça. Em segundo lugar, esta nova orientação mostra uma realidade publicitária que se torna cada vez mais uma realidade multiplataforma. Há alguns anos, só víamos publicidade virtual nas nossas TVs e depois em sites. Contudo, estamos, agora, expostos a um ecossistema de aplicações onde vemos publicidade, mas através do qual também podemos fazer compras imediatas, dentro das próprias aplicações.

 

"Os operadores de apostas e jogos online podem alavancar os seus negócios através de publicidade ou de compras através das suas aplicações, no caso de considerarem interessante estar associados a determinadas marcas, ou para ‘gamificar’ ainda mais a experiência do utilizador. Por exemplo, operadores de apostas e jogos online podem vender recursos premium para os seus jogadores."

 

Por fim, a publicidade e as compras numa aplicação também podem ser uma oportunidade interessante. Como grande parte das pessoas não quer pagar para ter acesso a notícias ou conteúdos dos media, a publicidade ou as compras numa aplicação podem ajudar as empresas a terem uma nova fonte de receita. Posso não querer assinar um jornal digital, mas posso comprar o acesso a certas notícias ou entrevistas. As compras na aplicação permitir-me-ão fazer essa escolha seletiva.

Neste contexto, os operadores de apostas e jogos online podem alavancar os seus negócios através de publicidade ou de compras através das suas aplicações, no caso de considerarem interessante estar associadas a determinadas marcas, ou para gamificar ainda mais a experiência do utilizador. Por exemplo, operadores de apostas e jogos online podem vender recursos premium para os seus jogadores. No entanto, essa oportunidade também tem alguns riscos associados. É importante conhecer as diretrizes e orientações, como as do CAP, que cobrem tópicos importantes como preço, moeda, apresentação e compra, orientações sobre como as compras no jogo devem ser comercializadas para evitar danos ao consumidor. No entanto, é novamente importante que essas diretrizes permitam a inovação dentro de limites sustentáveis e compatíveis e que não restrinjam desproporcionalmente o desenvolvimento do mercado.

 

APAJO: Muito obrigado por partilhar connosco as suas ideias sobre estes temas tão atuais e sensíveis.

 

Tiago Bessa: Muito obrigado, também, pela oportunidade.